Junji Ito é considerado um dos mestres do horror japonês, tendo criado alguns pequenos clássicos dos mangás do gênero, como Tomie, Uzumaki e Gyo, sempre lidando com o bizarro e o sobrenatural, e dos quais apenas Uzumaki saiu no Brasil, publicado pela Conrad em três volumes em 2006. A editora, na época, vinha lançando vários mangás de terror e, até então, desconhecidos do grande público, como Panorama do Inferno de Hideshi Hino e Ring – O Chamado de Hiroshi Takahashi, entre outros. Por um instante, a Conrad se tornava nossa salvação em se tratando de publicações alternativas. Mas, infelizmente, ela foi sumindo com o passar dos anos e, inclusive, deixou algumas obras incompletas, como Delivery Service of Corpse. A fim de suprir essas lacunas, eis que a DarkSide Books prometeu, em 2017, trazer alguns quadrinhos alternativos para o Brasil, com o ótimo acabamento que só ela tem. E ainda em 2017, publicou a coletânea Fragmentos do Horror, de Junji Ito, reunindo 8 histórias curtas publicadas originalmente entre 2013 e 2014 no Japão, após um hiato de 8 anos sem escrever nada de terror. E com a repercussão que a publicação teve no Brasil, é ótimo ver o autor sendo discutido e lembrado pelos fãs de HQs. E apesar da edição, como qualquer coletânea, apresentar histórias mais e menos interessantes, ela abriu uma porta para que outros títulos dele possam ver a luz do dia por aqui.

Review especial comentando cada uma das 8 histórias, sem muitos spoilers!

Uzumaki, A Espiral do Horror, é uma das minhas histórias preferidas. A maneira como Junji Ito transformou uma simples espiral no maior símbolo de horror de uma cidade, é genial. Desde as espirais nas pontas dos dedos, à língua, movimento dos mosquitos e da fumaça, a espiral se transforma no maior pesadelo grotesco do lugar. E foi esperando esse nível de leitura que comecei Fragmentos do Horror. E quando a expectativa está lá em cima, claro que há algumas frustrações. E talvez esse seja o Calcanhar de Aquiles dessa coletânea, pois as histórias não representam o melhor do autor, mas ainda mantém uma boa qualidade, estando acima da média de muita coisa que vemos por aí. Futon é a primeira história, abrindo a coletânea e apresentando vários pontos bastante característicos na obra de Junji Ito. Nela, uma mulher precisa lidar com o pânico do namorado, que aos poucos deixa de sair da cama (do futon) com medo dos espíritos que só ele vê. Aos fãs do terror japonês, essa é uma cena bastante típica no imaginário popular, como nos filmes Ju-On ou Água Negra, com os espíritos espreitando das paredes. E em Futon também vemos um relacionamento problemático, casa mal assombrada, espíritos femininos sexys e diabólicos, entre outros pontos que vão surgir em toda a coletânea.

Em seguida temos Monstro de Madeira, que apela para o lado grotesco e bizarro que só o autor sabe fazer. Uma casa histórica no Japão recebe a visita de uma mulher que, rapidamente, se apaixona pelo lugar. Literalmente: ela começa a desenvolver uma espécie de relação sexual com o ambiente, chocando o pai e a filha que moram no lugar. Algumas cenas merecem destaque por serem bem interessantes, como o momento em que tanto a casa quanto a mulher começam a virar uma coisa só. Por ser em preto e branco, as vezes é difícil transmitir algumas texturas e cores, mas aqui o autor conseguiu emular bem o efeito de madeira. Já em Gola Rulê, há outra pegada interessantíssima: um homem é amaldiçoado (também por uma sexy e diabólica figura) e tem sua cabeça cortada, forçando-o a segurá-la pelo resto da vida, se não ela irá cair a qualquer momento. Além dessa imagem, que por si só já garante a história, a namorada do cara merece destaque por ser uma das poucas protagonistas que, de fato, se movimentam pra fazer alguma coisa. Num determinado momento de pavor, ela parte pra cima da “vilã”! Uma história perturbadora e caricata.

Suave Adeus é um horror psicológico, bem mais tranquilo e apresentando a ideia de resíduos de imagem e energia que, mesmo quando morremos, uma parte de nós é mantida nesse plano, um “resíduo”. Segue a linha O Sexto Sentido de ser, com a protagonista lidando com pessoas que não sabemos se estão vivas ou não. Apesar de não ser um exemplo ideal do horror voltado pro bizarro que o autor produz, foi uma das minhas preferidas. Já Dissecação-Chan retoma esse lado tragicômico, com uma mulher viciada em dissecação, alimentando o sonho de ser aberta num centro cirúrgico. Apesar da temática beirar o absurdo, sempre um prato cheio pra Junji Ito, não chegou a me impressionar tanto. Ótimos desenhos, porém a feição debochada da protagonista arranca mais risos que pavor.

Como comentei, num determinado momento, o leitor já fica mais familiarizado com a estrutura que Junji Ito utiliza em suas histórias, que vão além da casa mal assombrada, relacionamentos quebrados, espíritos femininos e almas derretendo, mas há algo também nas personagens, com a maioria andando numa frequência só. Uma característica que é até bastante comum nos mangás, com as personagens não sendo tão explosivas em questão dos sentimentos, sendo mais frias e reservadas. Um ponto que me incomodou em algumas dessas histórias, pela falta de uma protagonista forte e independente, em vários momentos me peguei falando “faça alguma coisa, fulana!

Em Pássaro Negro há outra ideia muito legal que aproveita pra nos mostrar muito do folclore japonês, ao colocar a figura de uma harpia que “cuida” de um homem ferido, dando-lhe de comer, mastigando carne e regurgitando em sua boca. Claro que essa harpia, em sua forma humana, utiliza salto alto e tudo mais. Magami Nanakuse é o penúltimo conto e talvez o que mais sintetiza toda essa coletânea, além de trazer a melhor protagonista: uma fã incondicional da escritora do momento, que escreve romances sobre tiques nervosos. Ao ser convidada pela própria a conhecer sua casa, essa fã não fazia ideia do “processo criativo” de sua diva, que envolve tortura e confinamento. Talvez, pelo fato de morar aqui pelo Ocidente, foi a história que mais despertou empatia em mim, por estar num formato mais “filme de terror americano”, por assim dizer. Quer dizer, tem roteiro mais americano que uma jovem presa numa floresta ou casa, com algum anfitrião louco e cheio das torturas? Não foi a minha preferida, mas foi a que trouxe uma protagonista mais perto da realidade, de querer se vingar e fugir, mais forte. Essa reviravolta é algo que senti falta em algumas das histórias. E quando digo que ela sintetiza o trabalho do Ito, é por envolver os tiques, algo que está presente em praticamente todos os contos: segurar a cabeça prestes a cair; o desejo por ser dissecada; o tesão pela madeira; entre outros, todos tão estranhos quanto.

Fragmentos do Horror é uma coletânea interessante sobre a obra de Junji Ito, tratando-se de um retorno do autor após 8 anos longe do gênero terror. Por conta disso, principalmente no início, você percebe que está meio enferrujado, mas com os contos melhorando e ficando mais emblemáticos com o passar da leitura. Prova disso é a última história, A Mulher Que Sussurra, onde uma adolescente não consegue tomar nenhuma decisão, tendo o hábito (mais uma vez, os tiques) de se perguntar o que deve fazer a todo instante: se deve levantar com o pé esquerdo ou direito, olhar pra cima ou pra baixo, se é o momento de respirar ou não e por aí vai. Precisando de uma tutora pra conseguir ter uma vida mais ou menos normal, mas que em poucos meses se transforma num pesadelo.

O acabamento da DarkSide é ótimo, em capa dura e papel offset, com posfácio e índice, além de ótimas ilustrações entre os contos. Os detalhes gráficos merecem destaque, colocando a editora acima da média, no patamar de edições pra colecionadores. Pra se ter uma ideia, a capa possui uma espécie de relevo que, quando visto contra a luz, você descobre um desenho totalmente diferente.

 

Fragmentos do Horror

Autor: Junji Ito

Páginas: 224

Editora: DarkSide (2017)

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