Uma doença misteriosa afeta jovens saindo do colegial. É transmitida através do sexo e causa deformações imprevisíveis no corpo dos portadores. As vítimas desse mal devastador vivem em guetos, escondidas, com medo e aterrorizadas — ao mesmo tempo em que tentam manter a rotina em acampamentos no meio do mato. Poderia ser AIDS ou uma versão bizarra do Ebola, mas é Black Hole, de Charles Burns, uma das maiores obras-primas de quadrinhos dos últimos tempos.

Na trama, acompanhamos a rotina de adolescentes de Seattle nos anos 70. O foco não é exatamente a grandiosa década seminal do século passado, mas uma espécie de submundo aterrorizado por pesadelos inominados e descobertas terríveis feitas por adolescentes. Tudo em meio a conflitos comuns entre jovens descobrindo a si próprios. Temos basicamente quatro personagens principais: Chris, Rob, Keith e Eliza, cada um simbolizando um aspecto distinto de como é possível reagir aos efeitos da doença.

Chris quer largar tudo para viver um amor com um jovem também doente (Rob, que transmitiu a doença para ela em um episódio tão acidental quanto único). Mas Rob não pensa exatamente assim e tenta conciliar as duas vidas dele, enquanto faz o possível para esconder sua própria deformação: uma boca no pescoço dele que parece falar coisas diretamente do Inconsciente. Já Keith e Eliza formam um casal menos propenso a tragédia e representam uma espécie de aceitação: ela é sexy e insegura e foi a única pessoa que fez ele esquecer o amor que sente pela perdida Chris.

Não há exatamente uma história propriamente dita em Black Hole, mas sim uma jornada. Há momentos de horror absoluto (claramente influenciado pelos mangás mais perversos, mais Junji Ito e menos Suehiro Maruo), outros de paixão, e alguns salpicos de esperança. A narrativa é uma espécie de recorte contínuo muito similar a historietas pulp, e por vezes me lembrou um clássico dos gibis malucos: Como Uma Luva de Veludo Moldada em Ferro, do Daniel Clowes, uma das coisas mais loucas e subversivas que já li em quadrinhos. Mas, ao invés de disparar uma crítica ácida a sociedade americana como uma entidade cultural quase metafísica, Burns mira nos microcosmos das mudanças ultra-rápidas que adolescentes enfrentam — hormonais, sociais e comportamentais.

A doença é um processo aleatório inescapável, e por isso mesmo assustador. É quase terrorista, atua direto no Inconsciente, em nossos medos mais primordiais. No nosso medo do Desconhecido. Exatamente essa relação envolvendo pesadelos é que reforça o caráter de obra-prima da obra. Ao contrário de histórias de terror de baixa qualidade (seja elas em filmes, livros ou HQs), Black Hole não coloca um Grande Outro (um monstro, um fantasma, o Diabo) como objeto principal de Terror, mas sim como nós lidamos com as consequências dessa assombração. É um filme de George Romero sem elementos gore invadindo uma série como Barrados no Baile.

No caso, o Grande Outro é a deformação da aparência e a destruição da vida social. E pior: a Doença transforma o Sexo em algo potencialmente perigoso, devorador. No fim, a Doença é apenas um catalisador das nossas reações inconscientes. Não há vilões ou heróis aqui, apenas atos e consequências. Retirar-se completamente da sociedade em Black Hole pode significar evitar insultos e conviver apenas com similares, em abrigos no meio do mato, em barracas úmidas e asquerosas, cercado de meninos degenerados e com tendências suicidas. A segurança é sempre dúbia, nunca definitiva.

Artisticamente, Black Hole merece o panteão. Desde Sin City não encaramos um uso tão bem pensado do preto e branco, embora o resultado não seja farsesco como a última obra boa de verdade de Frank Miller. É tudo muito complexo, mas ligeiro como um mangá. Não há muito tempo para respiros, todos os personagens parecem à beira do desespero completo, longe de qualquer alívio.

Em seus primeiros trabalhos, Burns contribuiu com Art Spielgman (de MAUS) e sua revista vanguardista RAW, tão importante quanto a Heavy Metal para os quadrinhos europeus. Black Hole foi uma obra de fôlego de Burns. Foram 10 anos de publicações, entre 1995 e 2005, originalmente divididas em 12 volumes. O resultado foi multipremiado com todas as honras: nove Harvey Awards e um Eisner Awards de melhor álbum de 2006. É possível respirar esse planejamento complexo de Burns: os diálogos curtos (alguns irão detratar o fato dos diálogos serem secundários, mas não dê qualquer valor a esse tipo de crítica), as tramas simples e o horror crescente escondem uma série de metáforas e símbolos escondidos ao longo de toda a trama e desenhos. Um paralelo de natureza completamente diferente só pode ser encontrado com a obra-prima de Alan Moore: Promethea, provavelmente a melhor obra de ocultismo moderno publicada.

Embora a leitura simbólica mais fácil de Black Hole se relacione com as explosivas mudanças hormonais e sociais de adolescentes em típicas metrópoles pelo mundo (o próprio Burns revelou essa leitura), existem mais camadas de símbolos para serem analisados. O mais óbvio dele envolve Sexo. Mas não apenas o sexo prazeroso e irresponsável dos adolescentes, mas o próprio significado mágico e simbólico do ato. Vários dos capítulos da história se iniciam com fendas arredondas simbolizando vaginas. Várias delas estão em chamas. O próprio início da história, em que Keith se depara com um vórtice de pesadelo delirante no corpo de uma rã que ele está dissecando na aula de Biologia é o pontapé inicial perfeito para a jornada. A Revelação é tão forte que o faz desmaiar — e ainda deixa em aberto a possibilidade de que toda a história se passe na cabeça dele, durante um delírio.

O buraco na barriga da rã — arredondado e alongado — é a Vagina, que aqui não propriamente é apenas o órgão sexual, mas um portal para o Desconhecido. Não é por acaso que não houveram ondas de caças a bruxos, apenas bruxas: na Magia, as mulheres representam a Lua e a Noite, o desconhecido e incontrolável. E é exatamente por isso que gays (uma união simbólica entre o corpo masculino e o desejo feminino) possuem tanto espaço em ordens mágicas. Em sua visão, Keith delira sobre serpentes (símbolo do falo, o órgão sexual masculino) e monstros ao redor de adolescentes em uma selva. É o início de um pesadelo interminável, que começa na mente mas logo o alcança fisicamente. O importante não é se você será uma vítima da doença ou não, mas como irá lidar com ela.

Chris vai da repulsa completa ao Amor incondicional, tudo pelo conto de fadas que vive com Rob, que não demora para se transformar em pesadelo. Por outro lado, Eliza parece ser a personagem mais importante da obra e chave para uma espécie de escape do Buraco Negro (a vagina/doença, que ganha até uma possível comparação com o útero social familiar que envolve os humanos até a chegada da adolescência). Ao contrário dos outros, que se tornam repugnantes pelo seu aspecto doentio expelido, Eliza consegue expurgar seus demônios através de Arte perturbadora. Ela parece constantemente em transe, para soltar qualquer tipo de efeito da doença sobre si, e ainda ganhou uma cauda, doentiamente sexy.

No início é estranho, mas a cauda quente entre suas pernas, se movendo insinuante se tornou quase indispensável.”, pensa após uma sessão de sexo.

Para Keith e Eliza, a Doença é a redenção, a salvação completa. Há um componente mitológico envolvido na relação dos dois: Eliza é a Mulher-Serpente, Lillith, nascida do esperma de Adão em meio a sonhos sexuais noturnos. Ela é filha direta do desejo de Keith, e dá a ele o Fruto Envenenado (transmite a doença após ele aceitar fazer sexo com ela); Keith nem tenta resistir. A cena final dos dois alcançado o Paraíso e transando livres de qualquer culpa ou roupa é quase onírica, mais ou menos como uma das interpretações do final de Taxi Driver: o pesadelo se tornou um sonho quase inacreditável. Há também uma mensagem por trás do fato de que as únicas cenas de sexo gráficas mostradas na série envolverem os dois (as outras são apenas sugeridas e narradas, nunca desenhadas): só existe sexo livre quando estamos libertos da culpa e do medo, em um estágio pós-Doença — isso é, após superarmos as transformações da adolescência.

Para alcançar essa camada de símbolos é preciso enfrentar a repugnância das situações dos quadrinhos. A doença, em certo momento, se torna um componente das transas. Chris lambe a boca mutante de Rob, Keith segura o rabo de Eliza enquanto come ela de quatro. A doença — um horror para os acampados nas montanhas, alienados quase completos em busca apenas de uma desculpa para por em prática o próprio fanatismo — vira um fetiche poderoso para os casais conscientes da ação dela. Mais uma vez é necessário ressaltar a importância da arte de Burns: é imersivo e tem um efeito visual destruidor, você ‘entrará’ na história em poucos capítulos e se sentirá um voyeur durante todas essas descobertas.

Embora a questão da Psicanálise esteja forte na obra — na forma de ritos de passagem, objetos fálicos/vaginais, conflitos paternos, vozes inconscientes -, não é preciso ir longe para entender a Psicanálise como apenas uma ferramenta criada culturalmente justamente para analisar nossa expressão interior. Black Hole remete a algo mais primordial e ancestral. É o que Freud (citando o filósofo Friedrich von Schelling) classificou como Unheimlich, que seria “tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”.

O Abismo Também Contempla”. A frase é o título de um dos capítulos de Watchmen, mas também se aplica a um dos conceitos mais fundamentais e sutis de Black Hole: a aceitação de um Destino vs Livre Arbítrio. Enfrentar o monstro pode nos tornar parte dele, estamos todos interligados e blábláblá, embora não seja difícil chegar a esse tipo de conclusão, é mais fácil na teoria que na prática. A Doença representa a desgraça sem nome e ao alcance de um simples ato de prazer, mas é dicotômica.

Keith, em certo momento, desiste de lutar contra ela e agarra a face mais assustadora da doença: Eliza. Não por acaso, Eliza é a única personagem que não possui um segmento narrativo contado da perspectiva dela. Eliza funciona quase como uma divindade dentro do contexto da história. Embora desejável e sexy, ela também parece estranhamente desprovida do Horror causado pelas deformações, ou ainda quando emerge de situações devastadoramente traumáticas — as revelações dela de como a Arte que fazia foi destruída é quase capaz de estragar o final ligeiramente feliz da obra.

É essa face sedutora do Monstro que leva Keith a se atirar no Abismo. É mais ou menos como a conclusão de Donnie Darko (spoilers à frente): a linda Gretchen, namorada de Donnie, é justamente a face mais assustadora do Destino do herói, pois dela ele não consegue se livrar. Ela é o vórtice que o leva a aceitação, o Abismo olhando nos olhos dele e jogando em sua face o Pesadelo mais cruel possível, aquele unido ao Amor. Gretchen é o Mundo que Donnie quer salvar. É nesse significado que reside o símbolo da Mulher-Serpente (reiterando: Eliza, mas com um rosto estranhamente parecido com Keith, representando a união simbólica dos dois), que parece atravessar o Terror sem grandes traumas — em um contexto em que o coelho assassino (Frank, de Donnie Darko) é a Doença.

É o medo do diferente que torna o texto de Black Hole tão perturbador. E como a História (digo, a história humana e não a da obra) nada mais é que uma sucessão de marés tão similares entre si que quase não dá para acreditar: vemos as mesmas histerias gigantescas quando foi descoberta a AIDS (ainda hoje, classificada como “doença de gay”), os psicodélicos (Timothy Leary foi classificado como “o homem mais perigoso dos EUA” quando suas pesquisas estavam no auge, embora ele não fosse nada mais que um professor universitário) ou as bruxas medievais (servas diretas do demônio).

Essa é a obra-prima de Charles Burns. Uma parábola de auto-destruição envolvendo símbolos do Inconsciente, degradação, problemas sociais e consequências metafísicas. O final é, ao mesmo tempo, abrupto e esperançoso. As cicatrizes psíquicas profundas experimentadas por todos os personagens formam uma espécie de mensagem direta para o leitor: o perigo está por todos os lados e o próprio Medo pode ser um inimigo pavoroso, mas é importante vencê-los, vencer a si próprio. Black Hole é um labirinto de idas e vindas sem fim, um retrato da alienação quase esquecida de uma geração, recheadas de pesadelos, incertezas e Medo. Mais do que brilhante, a obra levou os quadrinhos para um novo nível de qualidade.


Black Hole

Autor: Charles Burns

Páginas: 368

Editora: DarkSide Books

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