Compartilhar no Facebook Compartilhar no Twitter Compartilhar no Google+ Compartilhar no Tumblr O novo filme de Yorgo Lanthimos narra a história de Steven Murphy e sua relação com um garoto misterioso chamado Martin. Steven é um cardiologista casado com Anna, também médica, oftalmologista. O casal tem dois filhos: Bob de 12 anos e Kim de 14. O espectador acompanha os acontecimentos que acometem a família “Murphy” após as recentes aproximações de Martin na vida de Steven. Trata-se de um suspense denso e angustiante, que se aproxima mais de Dente Canino (Kynodontas, 2009) do que do filme anterior de Lanthimos, O Lagosta (The Lobster, 2015). Cinema escuro e tela apagada: elementos decisivos para a captura dos espectadores no campo psicológico da situação cinema, diria Hugo Mauerhofer. Entretanto, a cena inicial de O Sacrifício do Cervo Sagrado não nos traz exatamente “alívio” do tédio – como afirmava Mauerhofer – após nos deixar no escuro por alguns minutos. Pelo contrário, enquanto a obra de Franz Schubert “Stabat Mater” invade nosso campo imagético com suas primeiras notas, somos lançados para dentro de uma caixa torácica aberta, onde bate um coração à espera de bisturis e agulhas. Pelo recorte da câmera, adentramos o recorte dos panos e pele que cobrem o corpo. Lá encontramos um coração totalmente humanizado que parece saber de sua sina. Tal qual uma presa que foge da rapina, ele rebate assustado. Talvez dance ao ritmo de “Jesus Christus schwebt am Kreuze” que toca ao fundo. Ou talvez ele saiba que este chorus refere-se à uma peça musical baseada no hino litúrgico que narra o sofrimento de Maria ao ver Jesus erguido na crucificação, um foreshadowing escancarado. O coração, assim como as mãos do cirurgião estabelecem uma relação de parte pelo do todo ao longo do filme. No caso das mãos, a metonímia está na relação em que elas estabelecem com as luvas do cirurgião. Ainda compondo a sequência inicial, vemos as mãos do Dr. Steven descartando as luvas ensanguentadas da cirurgia. Saem as luvas e o sangue, surgem as mãos perfeitamente limpas e com as unhas notavelmente bem cortadas. O filme recorrerá algumas vezes à beleza, limpeza e maciez das mãos de Steven, assim como todo o enredo é sustentado na constatação de que a limpeza destas mãos é uma ilusão. As luvas de cirurgião de Steven estão em uma posição diametral em relação às luvas de limpeza de Anna, sua esposa, ao limpar o sangue presente no porta-malas do carro do marido ou mesmo as luvas utilizadas pelo amigo de Steven ao limpar o peixe do almoço. Nesse filme, onde tem luva tem morto. Com o caminhar do enredo, descobrimos que em algum momento do passado, Steven operou o pai de Martin, provavelmente ocasionando a morte do mesmo. O filme nos indica que muito provavelmente Steven estivesse trabalhando embriagado, enquanto o próprio acredita que a causa da morte tenha sido culpa de seu anestesista. “Um cirurgião nunca mata um paciente, um anestesista mata um paciente, mas o cirurgião não” – Colin Farrell entrega o raciocínio de seu personagem com a arrogância necessária para que o espectador enxergue “as luvas” que Dr. Steven Murphy utiliza para proteger-se de seus erros. Entretanto, o aparato defensivo no qual o médico se envolveu não o protege de sua própria culpa, levando-o a se aproximar de Martin. Sem assumir a responsabilidade pela morte de seu paciente, Steven procura compensar seus atos oferecendo presente e sua escassa companhia ao garoto. Porém, o filme nos consegue rapidamente mostrar como Steven é uma pessoa bastante mesquinha e esvaziada. Os presentes que dá não são de coração e a companhia que tem para oferecer é burocrática. Se por algum tempo Martin parecia satisfeito em substituir o falecido pai por seu novo amigo, inclusive forçando um relacionamento entre sua mãe e o Dr. Murphy, as constantes esquivas do médico levam a narrativa para sua trama central. Temos que reconhecer que Yorgos é um “kubriquiano”. O Sacrifício do Cervo Sagrado é um diálogo direto com De olhos bem fechados (1999) e O Iluminado (1980) devido há diversas escolhas temáticas e técnicas. Os três são películas que abordam cada uma da sua maneira a corrupção do pai moderno. Esse modelo que enxerga na própria família os motivos de sua frustração como homem e profissional, nunca assumindo sua parcela de responsabilidade pelo mau agouro que o cerca. Esse sujeitinho mesquinho que uma vez enlouquecido pela culpa, coloca tudo à perder. O uso recorrente das steadicams em tomadas fluidas e fantasmagóricas que acompanham os personagens durante suas longas caminhadas pelo cenário compõe um universo compartilhado com o cinema de Stanley Kubrick, principalmente relacionado à estes dois filmes. Mais do que planos sequências no estilo conduzido por Garrett Brown em “O iluminado”, são as curvas que atormentam o espectador. Em O Sacrifício do Cervo Sagrado, Lanthimos reconstrói a sensação presente no universo Kubrick de que cada esquina espreita um precipício narrativo. Os cenários contribuem para tanto: o hospital e suas paredes brancas e brilhosas; o grande ballroom com festas de gala; o interior das casa com iluminações naturais. Nicole Kidman em “O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017)” Nicole Kidman em “De olhos bem fechados (1999)” Mas talvez nada grite mais “KUBRICK!” em O Sacrifício do Cervo Sagrado do que a personagem de Nicole Kidman, Anna Murphy. Quando Kidman conversa de frente ao espelho é quase como se Anna estivesse vendo Alice através do espelho em De olhos bem fechados. Anna e Alice dividem um paralelismo digno de teorias de ficção científica. A conexão entre os dois filmes é extremamente forte, mas o tom da diálogo entre Steven e Anna é completamente oposto ao de William e Alice. Estes encontram-se em uma crise típica de jovens casais na qual Alice revela ter guardado o desejo de abandonar o casamento para viver uma aventura amorosa com um marinheiro com que cruzaram nas últimas férias. Essa revelação leva o também doutor William Harford à vagar por Nova York em busca de uma aventura sexual qualquer. O casal Steven e Anna, por outro lado representam o casal acomodado com a própria mecânica da relação. Esta não suporta mais os ataques apaixonados e as gargalhadas cínicas que vemos em O Sacrifício do Cervo Sagrado. O que sobrou fora a sombra de uma fantasia mórbida “sadeana” na qual Anna finge estar em anestesiada (geral), enquanto Steven realiza o coito. Muitos críticos e resenhistas têm apontado O Sacrifício do Cervo Sagrado como sendo baseado no mito de Ifigênia de Eurípedes, entretanto como de maneira quase virulenta remetem-se à versão adaptada para o filme de 1977, Ifigeneia dirigido pelo também grego Michael Cacoyannis. A história na qual Agamênon acidentalmente mata um cervo sagrado ofendendo a deusa Ártemis é uma versão que não corresponde à obra de Eurípedes, Ifigênia em Áulide. No que se acredita ser a versão original de Eurípedes, o cervo aparece como resolução da peça e não como sua premissa. As tropas gregas encontram-se presas no porto de Áulide devido à uma calmaria que os impedem de seguir campanha para Tróia. O adivinho Calcas diz para Agamênon que o mal tempo é decorrente de uma promessa feita por ele há muito tempo à deusa Ártemis: havia prometido sacrificar o mais belo ser que nascesse em seu reino – no caso sua filha Ifigênia. Agamênon à contragosto decide pelo holocausto de sua filha com o intuito de manter o controle de suas tropas. [Nota da edição: Alô, Game of Thrones] No exato momento em que Ifigênia seria sacrificada, Ártemis lhe substitui por um cervo (ou uma corsa) que é morto no lugar da jovem. Se seguimos a adaptação de Cacoyannis, temos que o cervo sagrado é o pai de Martin, aquele que é morto por acidente, cuja morte demanda outro sacrifício substituto. Essa interpretação tem levado os críticos a interpretarem Martin como uma espécie de deus que exige de Steven o sacrifício para pagar suas dívidas. Entretanto, se recorrermos a outras obras mais antigas de Eurípedes Orestes, Electra e Ifigênia em Táurida, que narram os eventos posteriores à Ifigênia em Áulide, chegamos a alguns pontos bastante interessantes. O sacrifício de Ifigênia foi a gota d’água para a esposa de Agamênon, Clitemnestra, mesmo tendo por resultado a sobrevivência da garota. Ao retornar vitorioso da guerra de Tróia, Agamênon é assassinado por Clitemnestra e seu amante Egisto. Orestes, o irmão mais novo de Ifigênia, foge de Micenas e retorna mais velho para vingar-se da morte do pai. Sendo culpado da morte da própria mãe, Orestes é perseguido pelas Erínias, forças misteriosas do mundo infernal, vingadoras de crimes que perseguiam os criminoso torturando-os até enlouquecê-lo. As Erínias eram três: Megera, a inveja e ódio; Tisífone, a açoitadora; e Alecto, a vingança, difusora de pestes e maldições. Algumas tradições dizem que a loucura da Erínias faziam o criminoso recusar alimentar-se, morrendo de inanição. Martin é uma espécie de Erínia, que busca torturar Steven. O contato de Martin com os “Murphy” acaba por adoecer Kim, Bob e supostamente Anna. Após algumas cenas de aproximação do garoto com a família, Steven decide afastar-se do rapaz. Isso o leva a “amaldiçoar” a família do médico. A inanição retorna com uma das fases da doença criada por Martin. A maneira de impedir a morte de toda a família, diz Martin, depende de Steven literalmente sacrificar um membro dos “Murphy” como compensação pela morte do pai do garoto. Bob é o primeiro a perder os movimentos do corpo e o apetite, Kim é afetada a sequência. A maneira como Martin faz para adoecer as crianças é o grande Mcguffin do filme, já que há apenas mínimas insinuações de hipóteses dentro da narrativa (os copos d’água e as sugestões de Martin) e diversas entrevistas do próprio Yorgos afirmando que se trata de uma informação irrelevante para o enredo. O ato da personagem Martin contém uma crítica e aponta para o seguinte questionamento: o que faz dos “Murphy” uma família, ou seja, partindo do pressuposto narrativo oferecido por Lanthimos, o que os tornava os “Murphys”? Não é apenas Steven que é um canalha, frio e egoísta, mas desde as primeiras cenas podemos ver que Anna, Bob e Kim também são personagens gélidos e ausentes. Os Murphy são uma família na qual cada um anda com as próprias pernas, isolados em seus próprios abismos. Assim, precisamos resistir à tentação de nos antecipar na constatação de que a responsabilidade pelo desmantelamento da família Murphy se deve ao segredo de Steven, quando a película nos oferece todos os elementos que sustentam a concepção de que era a mentira em si, a opção por omitir sua culpa que mantinha a família “desfuncionalmente” unida. Assim, podemos compreender a cena final na qual os ‘Murphy” retornam à lanchonete palco dos encontros de Steven e Martin e lá encontram o garoto. A chave para compreensão não só do mito de Ifigênia, mas também de todo o ciclo trágico que envolve a família de Agamênon está relacionado com o binômio “sacríficio-subsituição”. Os sacrifícios de Orestes e Ifigênia não foram levados à cabo devido à artimanhas das substituição. O sacrifício grego não resume-se à uma simples punição por crimes passados, mas estabelece uma relação entre a imagem do corpo oferecido à própria polis. O imagem-corpo de Ifigênia nesse caso é um substituto da imagem-corpo do povo grego que presta suas homenagens aos deuses e aos mortos. E somente por essa substituição que o cervo/corça pode ser sacrificado no lugar, pois é a própria deusa Ártemis que equivalerá Ifigênia-Polis-Cervo. As ações das sequencias finais tentam nos dissuadir, nos levando a acreditar que Bob foi escolhido para sacrifício ao acaso. Entretanto, o desenvolvimento de Kim, a relação que ela estabelece com Martin, com Bob e com os próprios pais culminam na cena final e na longa troca de olhares que a garota estabelece com Martin. O Sacrifício do Cervo Sagrado / The Killing of a Sacred Deer (2017) Duração: 2h 1min Direção: Yorgos Lanthimos Elenco: Colin Farrell, Nicole Kidman, Barry Keoghan, Raffey Cassidy, Sunny Suljic, Bill Camp, Alicia Silverstone. Assista também: